domingo, 9 de novembro de 2014

O que é isto?

O que é isto que me acomete nestes últimos anos de vida? Que é infinito, e por isto, não consigo definir. Não chega nunca ao fim, apenas avança como um movimento natural de corpos que se entrelaçam. Pelas camas baratas, pelas ruas vastas e céus estrelados. O que é isto, meu Deus, que eu sequer consigo nomear? Há amor, há paixão e todos estes sentimentos que se assemelham, mas vai ainda além! E não exisite escapatória que dê conta do amontoado emaranhado de poeira de estrela e Marlboro vermelho que sempre volta a memória. Como se nunca se fosse. E não vai! Nunca passa, nem por um milésimo de segundo. E o que é isto?

Ainda e sempre será um enigma. Pois por mais que te conheça bem em cada traço, torna-te indecifrável a cada dia, diálogo ou discussão. A cada olhar com um toque a mais de profundidade, estou ganha. E me perco com expressão de vencedora, sortuda ou qualquer outro nome que você queira dar a isto. Isto. Mas você compreendeu bem o que eu quero dizer quando trato "disto"? Eu gosto de explicar a partir de memórias, as de quando as paredes não existem mais ao nosso redor, nem o resto do mundo. Gosto de argumentar usando as lembranças que tenho de quando, enfumaçados, somos apenas risos e bobagens românticas. De quando a porta do quarto se tranca e só restamos eu e você.

É quando descobre-se quase tudo sobre o outro e ainda sobra uma infinidade. Então eu deixo-me envolver nesta infinidade. Você não? Não sente este formigamento estranhamente delicioso quando a manhã chega e nossos sorrisos se apagam em um sono compartilhado. Quando seu corpo envolve o meu como uma canção de ninar e o dia chegou ao fim. Mais um dia chegou ao fim e ainda estamos ali: compartilhando isto, que nem sabemos muito bem o que é, juntos.


Para K.S.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Esquizofrenia

Projeto-te em meus desejos mais obscenos de menina. Em cada parte tua, consigo perceber, quase imediatamente, uma parte do conjunto desconhecido e encantador me seduzindo aos poucos, como quem vê fotografias dos cantos do mundo que almeja conhecer, mas que sabe que o caminho é longo demais e as pernas longas de menos. O espaço afastado demais e os dedos curtos, que não podem tocar as flores do Jadim de Versalhes em um dia de brisa leve, que não podem tocar e se emaranhar aos fios negros e macios do seu cabelo em um ato de afeto ou promiscuidade. 


Te vejo andar por aí, embriagado pelas noites da cidade. Eu, bêbada, te observo da janela do meu quarto confundir os pés do outro lado da rua,  desejando confundir minhas pernas com as suas na rua, no meu quarto, em qualquer lugar. E acabo por tê-lo, secretamente, depois que a garrafa de vinho tinto acaba, em lugar nenhum. 


E então eu relembro dos outonos passados. Dos sorrisos passados. Da paixão intensa que entrelaçava vidas. Do fim sem delongas, sem explicação.
E então eu me castigo, me machuco com e sem palavras, me repudio, cultivo os sintomas e os intensifico, grito, quebro mais meia dúzia de aparatos comprados durante a busca da satisfação e que não preencheram o espaço vazio - o da casa e o meu.
E então você some. E eu me recrio. Abro os olhos novamente e os aparelhos continuam quebrados no chão, a janela continua aberta, a garrafa de vinho tombada sobre a mesinha, a taça barata continua lascada em cima do criado-mudo, mas eu não. Eu não continuo, não hoje. 


Olho ligeiramente pela janela e já não há mais ninguém do outro lado da rua. Olho demoradamente o espelho e não há mais ninguém disputando o corpo fraco em que eu me enfiei. Olho profundamente para o passado e já não há mais você. Respiro. Sorrio ao me sentir completamente só novamente. Me alivio. Nunca houve você.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Alice



Alice deliciou-se com o conteúdo do vidro sobre a mesa e encolheu. Há dias atrás, a ideia de parecer invisível ao mundo havia fascinado seus pensamentos, mas agora estava invisível demais. Ela passou pela porta certa, percorreu o caminho desejado e ainda assim, sua pequenez a incomodava.

Alice sentia que passava despercebida e comeu do bolo. Agora era uma garota gigante. Sentiu-se realizada pelos primeiros minutos, mas logo percebera que era grande demais e não caberia mais no mundo. Lutou contra os guardas de copas e os venceu, mas sua grandeza a fazia uma aberração. Ser tão imensa a incomodava.

Alice tentou de outros meios. Tomou um avião e fugiu para a terra dos gigantes. Sentiu-se bem durante a primeira semana, mas logo percebeu: ali era comum demais. O que antes a fazia um ser bizarro, agora não era mais perceptível.

Alice mudou-se novamente. Dezenas de vezes e a história se repetia. Alice sentia-se um disco riscado, como se repetisse sempre a mesma frase de novo e de novo. Ela sofreu. Desistiu de tentar satisfazer-se e escondeu-se em seu quarto trancado.

Alice chorava, noite e dia. Não compreendia sua insatisfação para consigo mesma. Usou de seus disfarces para impressionar aqueles ao seu redor, mas com o tempo, Alice ainda entediava-se.

Na terça-feira seguinte, Alice acordou de sopetão. Ao entender que tudo aquilo não havia passado de um sonho, ela também compreendeu a si mesma. A culpa não era do frasco ou dos doces encantados que havia provado, a culpa era única e exclusivamente sua. O motivo de seu desconforto, não entendeu até hoje, mas o grande passo de sua vida havia dado: a descoberta de que compreensão de si não vinha dos objetos ou sequer das pessoas. A compreensão de si havia de vir de sua própria mente.